SÓCRATES E A ÉTICA COMO SABER
O núcleo essencial do “socratismo” * é a chamada tese da “virtude – saber”. * É o pensamento mais original de Sócrates e também a sua posição mais paradoxal. Na realidade, a tese é simples, * defender que “a virtude é saber”, é pura e simplesmente afirmar que aquele que sabe o que é o “bem” não pode deixar de o praticar. *
Falar hoje de “virtude” é evocar automaticamente as rigorosas exigências que os velhos manuais conformistas preconizam. Para nós, a “virtude” é uma mistura improvável de auto-sacrifício e de rigorismo, uma estranha combinação de altruísmo e castidade, em suma, um ideal de conduta rígido. Ideal muito louvável para os outros mas incômodo para nós, tão ridículo para uns quanto exaltante para outros. Ora, o termo * não transmite a um grego nem estas conotações ambíguas nem este sentido estritamente moral. * As virtudes do homem são as qualidades do homem perfeito: aquilo que faz com que o homem seja um homem. * Falar de virtude humana pressupõe uma interrogação sobre qual será a forma que o homem tem para atingir aquilo para que foi feito; tal como uma espada deve ser bem afiada para cortar, também o homem, para ser homem, deve ser virtuoso. * A virtude é aquilo para o que todo homem é feito, o que é característico do homem em todas as circunstâncias (isto é, sua verdadeira natureza humana). *
Interrogar-se sobre que é a virtude, * é de certo modo praticá-la, exercitar-se nela e tornar-se virtuoso. Porque tentar saber o que é a virtude do homem é para todo homem procurar saber o que ele é enquanto homem; e impor a si próprio essa interrogação racional é já agir como homem. * A virtude do homem não é mais do que aquilo que ele alcança ao procurar a sua essência, isto é, ao interrogar-se sobre aquilo que ele próprio é. *
Encontramos aqui um dos traços constantes do “socratismo”. * Para o homem não uma dualidade trágica * ou duas vias opostas (o bem e o mal); * há apenas uma, mas é graduada, consoante o mais e o menos, e hierarquizada do inferior ao superior. * Não há duas forças em oposição, mas apenas uma, mais ou menos intensa, que vai do saber até o seu grau zero: a ignorância. * O mal não existe, e a força do mal ainda menos. Há apenas bens inferiores.
WOLFF, Francis. Sócrates. Lisboa: Teorema, 1987. p. 79 a 107.
Sócrates foi um ateniense profundamente vinculado à sua cidade, e disso deu sobejo testemunho durante toda a sua vida, inclusive durante a prisão e até o momento da morte. Mesmo sabendo-se injustiçado, recusou a fuga e aceitou a sentença. Com isso mostrou que o indivíduo, sem a coletividade, não é nada. Mas é claro que seu vínculo não era com a prática social e política que de fato acontecia em Atenas. Por acreditar na virtude cívica, dedicou toda a sua vida a tentar encontrar os meios de renová-la e fortalecê-la. Nisso consiste a sua filosofia – é preciso enfatizar que a filosofia, com Sócrates, * teve um caráter público. É de acordo com esse caráter que se deve considerar que a busca socrática do fundamento da virtude cívica teve como finalidade realizar, de forma coerente e harmoniosa, a relação entre felicidade individual e coletiva. *
O preceito seguido por Sócrates, inscrito no templo de Apolo em Delfos, “conhece-te a ti mesmo” significa: a felicidade humana, a realização íntegra da excelência de ser humano, depende do conhecimento de si, isto é, do conhecimento do homem no plano de sua essência. A realização existencial de uma vida feliz (moral, pessoal, cívica, política) tem como requisito o conhecimento essencial de tudo que diz respeito ao homem, individual e coletivamente. A ignorância é causa do erro e da infelicidade; o saber é causa da verdade e da felicidade. Se a essência do homem é a sua alma, isto é, o seu intelecto, onde mais ele poderia encontrar a felicidade senão na intuição da verdade?
Em suma: a felicidade é o anseio de todos os homens; somente a virtude proporciona a felicidade; somente o saber proporciona a virtude; a alma é a sede do saber e só por ela podemos adquiri-lo; o erro moral é sempre um erro intelectual; somente cultivando o saber na e pela alma se alcançará a felicidade.
SILVA, Franklin Leopoldo e. Felicidade. São Paulo: Editora Claridade, 2007.p. 20, 21, 23 e 24.
Em uma famosa passagem de um dos diálogos de Platão (Mênon), o personagem Mênon * acredita que, embora existam algumas pessoas que desejam o bem, outras na realidade querem o mal. * Mênon * pensa ser óbvio que algumas pessoas querem coisas más.
Sócrates (interlocutor de Mênon, sempre presente nos debates filosóficos apresentados nos diálogos de Platão) * tenta * mostrar que ninguém deseja coisas más *. Sua idéia parece ser que, se alguém equivocadamente supõe que um objeto de desejo é bom quando na realidade é mau, então o objeto real do seu desejo não é realmente o objeto mau que a pessoa parece querer, mas, antes, o objeto bom imaginado pela mesma. * Sócrates induz Mênon a concordar que não há no mundo um único homem que deseje ser infeliz ou levar uma vida miserável.
Neste ponto, sobrevém toda a espécie de complicações. Posso querer fumar outro cigarro sabendo que, a longo prazo, fumar é ruim para mim, mesmo se a curto prazo, isso me proporcione o prazer de algumas tragadas? Certamente que posso. Sócrates não discute esse gênero de caso no Mênon. Mas podemos facilmente imaginar o que ele diria: Fazer tal coisa só seria possível abstraindo mentalmente toda a malignidade a longo prazo e concentrando-se nas satisfações a curto prazo, que assim se converteriam em um verdadeiro objeto de desejo. *
A argumentação de Sócrates * nos leva * à conclusão de que desejar coisas más requer ignorá-las ou ser simplesmente ignorante, em algum aspecto crucial, da malignidade daquilo que se quer. Essa conclusão harmoniza-se com a idéia socrática de que a virtude é uma espécie de conhecimento, e o vício * uma espécie de ignorância. Essa idéia torna-se plausível em função do pensamento mais genérico de que só se poderia querer uma coisa desde que se pense que ela seria, de alguma forma, algo bom para fazer ou ter. Seja o que for que queremos, * queremo-lo sob a forma do Bem – ou seja, concebido como algo bom. * Nos seguintes termos * formulemos * esta tese: querer alguma coisa é sempre querer algo que se acredita, nesse momento, ser bom.
MATTHEWS, Gareth. Santo Agostinho: a vida e as idéias de um filósofo adiante de seu tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 177 a 179.
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