Módulo 10

 

    

ALEGORIA DA CAVERNA



 

 

PARTE 1: CENA INICIAL

 

         A alegoria da caverna* pode ser dividida em três partes fundamentais. A primeira consiste na descrição da cena inicial, a caracterização propriamente da imagem da caverna, a metáfora platônica da realidade sensível, do mundo em que vivemos *. Trata-se de uma imagem muito forte e que terá um grande impacto em toda a nossa tradição. Na verdade, para os gregos da época, é uma imagem de grande poder evocativo, já que o mundo dos mortos (o Hades) era caracterizado como uma morada subterrânea, nas "entranhas da Terra". Nesse mundo Platão situa os prisioneiros, acorrentados e imóveis desde a infância, só podendo ver o que se encontra diante deles no fundo da caverna: as sombras. Esses prisioneiros, como o próprio texto explicita, somos nós, ou seja, o homem comum, prisioneiro de hábitos, preconceitos, costumes, práticas, que adquiriu desde a infância e que constituem "correntes" ou condicionamentos que o fazem ver as coisas de uma determinada maneira, parcial, limitada, incompleta, distorcida, como "sombras". As sombras não são falsas ou irreais, mas ilusórias, por serem realidades parciais, o mínimo que o prisioneiro enxerga da realidade - porém, como não tem possibilidade de distinguir mais nada, ele trata como verdadeira a única realidade que conhece, daí a ilusão. O homem condicionado e limitado, pelo seu modo de vida repetitivo, que não o deixa pensar por si próprio, só consegue ver as sombras.

Do lado oposto da caverna, Platão situa uma fogueira - fonte da luz de onde se projetam as sombras - e alguns homens que carregam objetos por cima de um muro, como num teatro de fantoches, e são desses objetos as sombras que se projetam no fundo da caverna e as vozes desses homens que os prisioneiros atribuem às sombras. Temos um efeito como num cinema em que olhamos para a tela e não prestamos atenção ao projetor nem às caixas de som, mas percebemos o som como proveniente das figuras na tela. Esses homens no outro lado da caverna são os sofistas e políticos atenienses que manipulam as opiniões dos homens comuns e são os produtores de ilusão *.

 

PARTE 2: LIBERTAÇÃO DE UM PRISIONEIRO

 

Na segunda parte do texto Platão examina o processo de libertação de um prisioneiro. Possibilidade a princípio estranha, pois o que o faria libertar-se? Sobre­tudo porque Platão caracteriza esse processo como difícil e até mesmo doloroso e sofrido*, fazendo com que o prisioneiro prefira a situação anterior à qual já se encontra adaptado. É só na medida em que consegue adaptar seu olhar à nova realidade que passa a vê-la melhor e a entendê-la, preferindo-a então à situação anterior *. É através desse processo sucessivo de adaptação do olhar e de busca de uma nova visão que o prisioneiro, sempre caminhando em direção à luz, sai da caverna e percorre * as etapas no mundo externo *, olhando primeiro as sombras e imagens, depois os próprios objetos, depois os reflexos dos astros até finalmente conseguir olhar o próprio Sol. O Sol simboliza aí para Platão * o grau máximo de realidade, o ser em sua plenitude, a própria Ideia do Bem, através da metáfora da luz como o que ilumina, torna visível e se opõe à escuridão e às trevas. Essa é inclusive uma das origens da influência da metáfora da luz como símbolo não só do conhecimento e da verdade, como o próprio bem, tão marcante em nossa cultura. Quando o prisioneiro chega à visão do Sol, * compreende que este "governa tudo no mundo e é causa de tudo, mesmo do que ocorre na caverna" *. O Sol seria assim fonte de toda a luz, ou seja, de toda a realidade, e mesmo as sombras na caverna dependem, em última instância, da luz do Sol: sem luz não haveria sombra. Ao chegar à visão do Sol, o prisioneiro completa o processo de transformação de sua situação inicial, passa a contemplar o saber porque vê diretamente a fonte de toda a luz: o ser, a realidade[1]. * Com efeito, segundo o próprio texto, o prisioneiro ao atingir essa região superior preferiria qualquer coisa a voltar à sua situação inicial.

 

PARTE 3: A VOLTA À CAVERNA

 

Entretanto ele deve voltar à caverna! Essa é a terceira parte do texto, em que Platão descreve *a volta à caverna, contraponto da parte inicial, * em que o prisioneiro sai da caverna para a região superior. Podemos nos perguntar: por que o prisioneiro deve voltar à caverna? Platão caracteriza com isso a missão político-pedagógica do filósofo, que, não contentan­do-se em atingir o saber, deve procurar mostrar a seus antigos companheiros na caverna a existência da realidade superior, bem como motivá-los a percorrer o caminho até ela, mesmo que corra o risco de ser incompreendido e até assassinado, uma clara alusão ao julgamento e morte de Sócrates. E este processo * exige igualmente uma adaptação da visão do filósofo - agora no sentido oposto, que pode ser até mais desorientador - para que sua missão seja eficaz. Não é correta portanto a visão do filósofo como puramente contemplativo, já que ela não dá conta da volta à caverna, que representa explicitamente o seu papel político.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 62, 65, 66, 67.



[1] A tradição monoteísta cristã que leu e estudou Platão muitas vezes interpretou a Ideia do Bem, representada pelo Sol na alegoria, como o próprio Deus monoteísta. Isto ocorreu porque, embora Platão compreenda o divino como múltiplo (engloba as múltiplas ideias, o demiurgo, as almas...), a Ideia do Bem adquire destaque e preeminência no mundo transcendente divino.



PLATÃO E O SIMULACRO

 

Simulacro significa precisamente aparência externa do que é, copiar exatamente ou imitar a realidade. Essa dimensão teatral, ou mais propriamente cenográfica, das imagens como simulacros, simulações e dissimulações na vida humana, é inerente precisamente a uma das narrações originais que definiram a filosofia como conhecimento crítico da existência humana e do mundo: o mito da caverna de Platão. De acordo com o platonismo, o simulacro é uma réplica do verdadeiro ser das coisas. A pretensão ilusionista confunde a réplica ou o simulacro do mundo com a sua realidade na ficção de um espetáculo, na irrealidade da experiência e da vida. A dimensão ligada à experiência humana das coisas está inteiramente ausente na definição de simulacro, que é uma cópia ou duplicação ilusionista da realidade. Sua mais perfeita fidelidade às qualidades sensíveis do objeto que reproduz implica, em sua pretensão ilusionista de suplantar ou superar a experiência do real, um princípio de ocultação e de opacidade.

SUBIRATS,  Eduardo. A cultura como espetáculo. São Paulo: Nobel, 1989. p. 59, 60, 62 e 63.


O SIMULACRO NO MUNDO

 CONTEMPORÂNEO

 

"Que criança linda" - disse a amiga à mãe da garota. - "Isto é porque você não viu a fotografia dela a cores" - respondeu a mãe! * Preferimos a imagem ao objeto, a cópia ao original, o simulacro (a reprodução técnica) ao real. E por quê? Porque * há * uma corrida em busca do simulacro perfeito da realidade. Simular por imagens como na TV, que dá o mundo acontecendo, significa apagar a diferença entre real e imaginário, ser e aparência. Fica apenas o simulacro passando por real. Mas o simulacro, tal qual a fotografia a cores, embeleza, intensifica o real. Ele fabrica um hiper-real, espetacular, um real mais real e mais interessante que a própria realidade. *

         Entre nós e o mundo estão os meios tecnológicos de comunicação, ou seja, de simulação. Eles não só nos informam sobre o mundo; eles o refazem à sua maneira, * transformando-o num espetáculo. * De que maneira * modelam, motivam e controlam * pelo bombardeio informacional? As mensagens * não são boladas de qualquer jeito. Não apenas representando o real, mas sendo hoje o real, as mensagens são criadas visando à espetacularização da vida, à simulação do real e à sedução do sujeito. * Foi-se tempo em que havia separação clara entre real e imaginário *. Vive-se agora entre simulacros em espetáculo para seduzir o desejo.

SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 12, 13, 96 e 98.

 



 

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   O SILVÍCOLA

 

         Nos alvores do primeiro século, antes da jovem humanidade ter-se espalhado sobre o mundo, os nossos remotos ancestrais eram silvícolas. Viviam em grupos na penumbra das densas florestas tropicais, em constante briga com seus parentes mais próximos, os macacos, e acima deles só reconheciam uma divindade e uma lei: a selva. As florestas eram seu lugar, refúgio, berço e túmulo, não podendo imaginar a existência fora delas. Tímidos por natureza, os silvícolas evitavam aproximar-se da orla da floresta e algum que tivesse sido atraído para lá, por circunstâncias especiais, durante a caçada ou em fuga, vinha contar aos companheiros, tremendo e cheio de pavor, como era vazio e ofuscante para além da selva, onde se via brilhar o nada terrível sob o calor mortal do grande disco amarelo. Aí vivia um velho silvícola que há muitos anos fora perseguido por feras e procurara refúgio além da orla da floresta, ficando cego em pouco tempo. Era agora uma espécie de homem santo e pregador, e chamava-se Mata Dalam (o que tem olhos internos); compusera um cântico da selva que era entoado durante as grandes tempestades e os silvícolas obedeciam-lhe fielmente. Sua fama e segredo consistia em ter visto o Sol com seus próprios olhos e não ter morrido em consequência disso.

         Os silvícolas eram homens baixos e morenos, muito peludos, andavam com o tronco inclinado para frente, tinham os olhos mortiços e inquietos. Sabiam caminhar indistintamente como homens ou macacos. Acocoravam-se nos galhos das árvores com a mesma segurança com que se sentavam no chão. Ainda ignoravam o que eram choupanas ou casas, mas já sabiam adornar suas armas e ferramentas. Faziam arcos e flechas, lanças e maças de madeira resistente, penduravam ao pescoço colares feitos de ráfia, bagos e nozes secas e também usavam na cabeça, nos lábios, nas orelhas e nos braços, dentes de javali, garras de tigre, cocares de penas de papagaios, conchas de rios. Através da imensa floresta passava um grande rio de que os silvícolas só se atreviam a pisar as margens sob a escuridão da noite e muitos ainda não o tinham visto sequer. Os mais audazes atreviam-se, por vezes, a sair da floresta à noite, e riam do fraco brilho da Lua, espiavam os elefantes tomando banho e, através das copas das árvores mais baixas, espantados, viam as estrelas refulgentes penduradas nos mangues que se entrelaçavam no desaguadouro do rio. Mas nunca se arriscavam a olhar o Sol, que era tido como uma coisa sumamente perigosa e que, no verão, desferia raios mortais, cegava ou enlouquecia quem enfrentasse seus reflexos de fogo.

         Ora, a essa tribo de silvícolas, que era guiada pelo cego Mata Dalam, pertencia também o jovem Kobu, reconhecido como líder e porta-voz dos homens insatisfeitos da sua idade e geração. Pois, na verdade, existiam descontentes entre os mais jovens, depois que Mata Dalam envelhecera e se tornara autoritário e despótico. Cego como era, gozara até então do privilégio de ser alimentado pelos demais elementos da tribo, em troca dos conselhos que dava e dos cânticos que compunha. Com o tempo, porém, Mata Dalam começou introduzindo novos e incômodos hábitos que, segundo dizia, tinham-lhe sido revelados pela divindade tutelar da floresta, durante o sono. Alguns dos jovens afirmavam, entretanto,  que o velho não passava de um embusteiro e procurava apenas imaginar leis que lhe dessem mais vantagens.

         Uma das novidades que Mata Dalam introduziu foi uma festa da Lua Nova. Sentava-se no meio de uma roda, tocando um tantã feito do tronco de uma árvore, e os outros silvícolas tinham de dançar na roda e cantar o golo elah até caírem extenuados. Então, cada um perfuraria a orelha esquerda com um espinho e as moças dirigir-se-iam ao velho para que ele também lhes perfurasse uma orelha com o espinho.

         Kobu e alguns de seus companheiros tinham-se recusado a obedecer a esse novo costume e procuravam convencer as moças a resistirem também. Num dado momento, tiveram a esperança de quebrar o domínio do velho. Mata Dalam iniciara as festividades de mais uma Lua Nova e estava perfurando a orelha esquerda das moças. Uma delas, porém, das mais robustas, gritou terrivelmente e debateu-se com desespero, resistindo à ordem do velho cego que, de súbito, estendeu o braço e perfurou com um espinho o olho da moça, e o olho escorreu. A infeliz soltava gritos lancinantes e clamava por socorro e todos os jovens acudiram-na. Quando viram o que acontecera, emudeceram confusos e enfurecidos, pensando que chegara o momento de acabar com o poderio do cruel ancião. Cercaram-no, com um ar de desafio triunfante que o cego não podia enxergar mas pressentiu quando Kobu o agarrou por um ombro. Mata Dalam ergueu-se então, largando seu tantã, e com uma voz aguda proferiu uma maldição de tal modo horrível que todos fugiram apavorados e gelou o coração do próprio Kobu. O velho gritava palavras que ninguém entendeu direito mas pela veemência e tom pareciam ser coisas tão violentas quanto as maldições lançadas, muitos séculos depois, pelos homens de Deus sobre os infiéis e pecadores. Que dizia o colérico Mata Dalam? Ele profetizava que os olhos de Kobu serviriam de comida aos corvos e que suas entranhas torrariam ao sol no descampado vazio. Depois, o velho - que nesse momento se investia de mais poder do que nunca - chamou novamente a moça a que furara  um olho e, quando a teve junto dele, gemendo e chorando, espetou-lhe o espinho no outro olho e todo mundo assistiu à cena medonha num silêncio aterrado, sem se atrever sequer a respirar.

         - Tu irás morrer fora da floresta! - gritou o velho para Kobu.

         Depois dessas palavras, os outros membros da tribo evitavam falar com o jovem, a quem passaram considerar um banido, um maldito sem esperança. ‘Fora’ significava, em resumo, fora das sombras protetoras da floresta, fora do convívio da tribo, queimaduras do Sol e o vazio ardente e mortal.

         Kobu também estava aterrorizado. Andava longe dos outros e, quando alguém se acercava, fugia a esconder-se num tronco oco. Dias e noites a fio, sem dormir, Kobu vacilava entre um medo mortal e uma grande teimosia. Surgiriam homens de sua tribo para matá-lo? O Sol irromperia na floresta e cercá-lo-ia com seus raios fulminantes? Ou poderia  contar com alguns amigos e aliados para a grande vingança? Porém, não apareciam flechas nem lanças, nem Sol e seus dardos de fogo, nada. Apenas um cansaço profundo e a gritante voz da fome.

         Então Kobu rastejou para fora da árvore, atento aos ruídos e quase com uma sensação de desapontamento pelo silêncio que o envolvia.

         ‘Nada tem mais força que a maldição do pastor’, pensava ele. Procurou alimentos e quando sentiu de novo a vida pulsar em seu corpo, uma onda violenta de ódio e orgulho se apossou dele. Kobu não voltaria mais para junto dos seus. Viveria doravante como um eremita, um renegado a quem o velho cego dirigiria terríveis maldições. Ficaria só, recusaria todo contato com seus irmãos, afugentá-los-ia até, se se aproximassem mais, ou melhor, iria vingar-se.

         Meditou longamente sobre tudo o que acontecera. Recordou todas as dúvidas, tudo o que lhe parecera fraude e, sobretudo, o tantã de Mata Dalam e suas festividades. E quanto mais pensava mais claro ficava: sim, tudo era fraude, tudo não passava de mentiras e ardis. Daí foi um passo também duvidar até de coisas que antes considerava verdadeiras e tabus. Que dizer do tal deus da floresta de que o cego falava? E do cântico da selva que ele inventara? Oh, também nisso nada existia de verdadeiro, tudo era fingimento e mentira! E, vencendo um secreto medo, entoou o cântico da selva com voz trocista, trocando todas as palavras, e gritou três vezes o nome da divindade da floresta, que ninguém podia pronunciar sem sofrer a pena do ostracismo, exceto o velho cego. E tudo ficou quieto como antes, nenhuma tempestade se desencadeou, nenhum raio o fulminou, nenhuma fera o devorou. Kobu soltou uma gargalhada.

         O jovem solitário assim vagou durante dias e semanas, rugas profundas cavadas em sua testa, o olhar febril e penetrante em que pairavam estranhas interrogações. De noite, ia também onde ninguém se atrevera: caminhava na margem do rio durante a lua cheia. Contemplava primeiro o reflexo do disco pálido nas águas, depois erguia os olhos para o céu e, corajosamente, olhava a lua e as estrelas cara a cara e nada, nada lhe acontecia. Passou a ficar noites inteiras sentado à beira do rio,  deliciado com seu próprio atrevimento impune, extasiando-se na contemplação da claridade proibida. E pensava.

         Muitos planos audazes e terríveis lhe acudiam a mente. A lua é minha amiga, pensava ele. E as estrelas são minhas amigas. Mas o velho cego é meu inimigo. Então, talvez  o ‘fora’ seja melhor do que o nosso ‘dentro’ e, quem sabe, toda essa santidade da floresta não passe de um embuste. E assim foi que Kobu, de uma geração perdida nos mais remotos tempos do mundo, teve pela primeira vez a ousada e genial ideia de amarrar alguns troncos de árvore com ráfia, sentar-se sobre eles e deslizar rio abaixo. Seus olhos brilhavam de excitação e o coração batia-lhe com violência. Mas logo teve de desistir. O rio estava coalhado de jacarés.

         Não lhe restava, senão, outro caminho para o futuro, abandonar a floresta, ao longo da margem, se existisse um fim da floresta, e aventurar-se pelo vazio ardente, pelo ‘fora’ maligno. Aquele monstro, o sol, tinha de ser enfrentado e vencido. Pois - quem podia saber? - não seria a doutrina do sol ruim uma mentira?

         Este pensamento, o último de uma cadeia febril e audaciosa, fez Kobu estremecer. Sim, nenhum homem se atrevera ainda a abandonar voluntariamente a floresta e a defrontar o sol. Ficou mais alguns dias meditando e, finalmente, encheu-se de coragem. Dirigiu-se, em passo furtivo, para o rio que brilhava sob a luz de pleno dia. Agachou-se à beira da água e procurou, ansioso, o reflexo do sol no espelho líquido. O fulgor magoou-lhe os olhos e teve de fechá-los rapidamente, ofuscado. Instantes depois, abriu-os e tentou de novo. E tentou mais uma vez, e outra vez, até que conseguiu. Era possível, sim, um homem podia suportar o sol e até o fazia mais alegre e corajoso. Kobu passou a ter confiança no sol. E amou-o, ainda que pudesse matá-lo, e sentiu ódio pela escura, úmida e podre floresta, onde seus irmãos se agachavam amedrontados e donde ele, o jovem e corajoso Kobu, fora banido.

         Agora, sua determinação tinha amadurecido e saboreava-a como um fruto suculento e doce. Fez um martelo de pau-ferro, colocando-lhe um cabo fino e leve, e foi procurar de madrugada o velho Mata Dalam. Encontrou-lhe o rastro, seguiu-o e, assim que o viu na sua frente, desferiu-lhe um golpe na cabeça. O velho caiu fulminado e de sua boca contorcida escorria uma baba ensanguentada. Kobu colocou sua arma sobre o peito do morto e, para que todos soubessem que o matara, gravou penosamente na superfície lisa do martelo, com uma concha, um círculo com diversos raios em torno: a imagem do sol.

         E partiu, decidido, rumo ao ‘fora’ distante, caminhando de manhã à noite pela selva em linha reta, durante dias e dias, cruzando riachos e pântanos escuros e, finalmente, terras altas com pedras manchadas de musgo, como ele jamais vira, e encostas ainda mais íngremes, barrancos e desfiladeiros. Mas a floresta parecia ser eterna. Por mais que andasse nunca via seu fim. No alto das colinas olhava à sua volta e tudo era selva densa e escura. Kobu parou, cansado e triste, e pensou que talvez estivesse proibido aos seres da floresta, por uma divindade poderosa, abandonarem seu mundo verde e silencioso.

         Com a teimosia dos jovens, Kobu decidiu, porém, continuar em frente. E então, uma noite, depois de ter subido cada vez mais alto, sentindo que o peito se enchia de um ar cada vez mais leve e seco, encontrou subitamente o Fim. A floresta terminava e, com ela, o chão também. A selva mergulhava ali no vazio, como se, naquele lugar, o mundo se houvesse partido em dois. Nada se enxergava além de uma longínqua e tênue vermelhidão e, por cima, algumas estrelas.

         Kobu sentou-se na beira do mundo e amarrou-se com cipós para não cair lá embaixo. Passou a noite acocorado, numa grande excitação, sem fechar os olhos, e quando viu os primeiro clarões de luz pôs-se de pé, de um salto, esperando a chegada do dia debruçado sobre o vazio.

         Listas douradas começaram a alastrar no céu azul pálido e todo vazio parecia tremer de expectativa, como ele próprio tremia, pois jamais vira a alvorada num espaço tão amplo e puro como aquele. Depois, feixes de luz incandescente começaram a se acender do outro lado do abismo e, de súbito, viu o disco imenso e rubro subir lentamente para o céu, lentamente, até ficar suspenso e desprender-se da planície cinzenta e morta que logo ganhou tons azuis-escuros, depois azuis mais claros, e reflexos prateados, e já não era mais um vazio sem fundo. Kobu contemplava o mar.

         Diante do trêmulo silvícola desvendava-se agora todo o ‘fora’. A seus pés, a montanha descia até profundidades enevoadas. À sua frente, rochedos de formas caprichosas onde o sol punha reflexos policromos de pedras preciosas. De um lado, espreguiçava-se o mar gigantesco, beijando a costa branca e orlada de espuma. Do outro, a montanha com seu arvoredo balouçando suavemente na brisa reconfortante. E dominando tudo, mar, arvoredo, montanhas, as mil coisas e as mil formas estranhas, o Sol - despejando cascatas de luz sobre um mundo que se oferecia em mil cores sorridentes.

         Kobu não conseguia olhar para a face do sol. Mas via sua luz correr na maré colorida, envolver as montanhas, as ilhas distantes e azuis, dourar as copas das árvores, beijar a corola das flores. E o jovem silvícola caiu de joelhos, inclinando o rosto para o chão, reverenciando os deuses desse mundo radiante. Ah, quem era ele, Kobu? Um pequeno e sujo animal que levara até então uma vida completamente surda, num buraco pantanoso, na penumbra da selva, tímido e esquivo, servindo a divindades infames. Mas ali estava o mundo diante de seus olhos e o supremo deus era o Sol. O longo e ignóbil sono de sua vida na floresta ficava agora muito para trás, começava a apagar-se em seus olhos e em seu espírito com a imagem pálida do sacerdote cego e morto. Com a ajuda dos pés e mãos, Kobu começou descendo o íngreme abismo em direção à luz e ao mar. Ébrio de felicidade, todo o seu ser fremia ao acercar-se de uma terra onde, Kobu estava certo, viviam homens lúcidos, fortes e livres - seres que só aceitavam o Sol por seu único senhor.

HESSE, Herman. O livro das fábulas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.

 


Hermann Hesse (1877-1962), escritor alemão naturalizado suíço, prêmio Nobel de literatura em 1946, no conto O silvícola reconstrói no séc. XX o enredo da "alegoria da caverna" de Platão, trocando a "caverna" por uma "floresta".

                          


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