Módulo 17

 

NIETZSCHE E O SOFRIMENTO



           Da escola de guerra da vida. – O que não me mata me fortalece.

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. I.8 p. 10.


Segundo Nietzsche, * era impossível * uma vida plena * sem passar por períodos de grande infortúnio *. Os mais satisfatórios projetos humanos pareciam inseparáveis de um grau de tormento; estranhamente, as origens de nossas maiores alegrias pareciam residir junto àquelas de nossos maiores sofrimentos:

 

         “Examinem a vida das pessoas e dos povos mais brilhantes e mais produtivos e perguntem a si próprios: se uma árvore que deve alcançar uma altura invejável pode prescindir do mau tempo e das tempestades e se o infortúnio e a resistência externa, alguns tipos de ódio, a inveja, a obstinação, a desconfiança, a insensibilidade, a avareza e a violência fazem, ou não, parte das condições favoráveis sem as quais qualquer grande progresso, mesmo o da virtude, quase nunca é possível.” (NIETZSCHE, Gaia Ciência, parágrafo 19).

 

         Por quê? Porque ninguém é capaz de produzir uma grande obra de arte sem ter experiência, ou alcançar uma posição social de uma hora para outra, ou ser um grande amante na pri­meira tentativa; e no intervalo entre o fracasso inicial e o sucesso subsequente, no espaço de tempo que separa a pessoa que um dia queremos ser e a que somos no momento, devem vir a dor, a ansiedade, a inveja e a humilhação. Nós sofremos porque não conseguimos espontaneamente conhecer a fundo os ingredientes da satisfação.

Nietzsche esforçava-se para retificar a crença de que a satisfação ou é facilmente obtida ou jamais nos bate à porta, uma crença de efeitos nocivos por nos induzir a desistir prema­turamente dos desafios que poderiam ter sido vencidos se ao menos nos tivéssemos preparado para as batalhas que pratica­mente tudo que é valioso tem o direito de exigir. *

Toda a vida é difícil; o que torna algumas vidas satisfatórias é a maneira de encarar o sofrimento. Todo infortúnio é um indí­cio vago de que algo vai mal. Reverter ou não este prognóstico depende do grau de sagacidade e de determinação daquele que sofre. A ansiedade pode desencadear o pânico ou uma análise precisa de uma conjuntura desfavorável. Um sentimento de injustiça pode conduzir ao crime ou a uma obra teórica e bem fundamentada sobre economia. A inveja pode resultar em amargura ou a decisão de se entrar em competição com um rival e na produção de uma obra-prima.

Como Montaigne[1] - estimado por Nietzsche - explicou no capítulo final dos Ensaios, a arte de viver está em se fazer bom uso de nossas adversidades:

 

“Devemos aprender a suportar tudo aquilo que não podemos evi­tar. Nossa vida compõe-se, como a harmonia do mundo, de dissonâncias e de diferentes tons, maviosos ou estridentes, sus­tenidos e bemóis, suaves e grandiosos. Se um músico gostasse de apenas alguns deles, o que lhe restaria para cantar? Ele preci­sa saber como usar e combinar todas as variedades de tons. Da mesma forma devemos agir com relação ao bem e ao mal, pois são eles que formam a essência de nossa vida.” (MONTAIGNE, Ensaios).

 

Cerca de trezentos anos depois, Nietzsche abordou o mesmo tema:

 

“Se fôssemos ao menos terrenos férteis, não permitiríamos que nada se tornasse inútil e veríamos em cada acontecimento, em cada coisa e em cada homem um adubo bem-vindo.” (NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, vol.II, parágrafo 332).

*

Nietzsche viu nas dificuldades um pré-requisito decisivo da satisfação e concluiu que as formas açucaradas de consolação eram, em sua essência, mais cruéis do que úteis:

 

“O combate às doenças da humanidade gerou uma doença ainda mais grave. A longo prazo, o que parecia a cura acabou por agravar os males que pretendiam eliminar. Por ignorância, acreditou-se que os métodos de efeito imediato que só faziam entorpecer e inebriar, as supostas consolações, eram verdadeiras curas. Ninguém foi capaz de perceber * que, muitas vezes, o preço que se pagava por este alívio imediato trazia um agravamento geral e profundo do sofrimento.” (NIETZSCHE, Aurora, parágrafo 52).

 

Nem tudo que nos faz sentir melhor é bom para nós. Nem tudo que magoa pode ser ruim.

 

“Considerar os estados de infortúnio em geral como um obstáculo, como algo que deve ser abolido, é a [suprema estupidez], representa um verdadeiro desastre em suas consequências... quase tão estúpido quanto a pretensão de se abolir o mau tempo.” (NIETZSCHE, Ecce Homo, capítulo Por que sou um destino?, parágrafo 4).

 

BOTTON, Alain de. As consolações da filosofia. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.  p. 243, 244, 353, 354, 275 e 276.

[1] Michel de Montaigne (1533 - 1592): filósofo francês.



Clique em cima para ampliar





Nenhum comentário:

Postar um comentário