Módulo 14

 


PERSPECTIVISMO SENSORIAL

 


 


 


              O Homem é certamente um animal. Outros (animais) não poderão conhecer senão aqueles mundos possibilitados pelos seus órgãos de sentido, pelas suas estruturas cerebrais, pelas suas condições de vida. Para cada animal, há dois mundos, numa relação muito complicada: um, exterior e preexistente; outro, interior e construído. Assim, segundo as diferentes espécies, a sensibilidade às cores não é a mesma; os limiares auditivos variam, a percepção térmica é diversa, o alcance da visão é singular, as categorias olfativas são variáveis.

        Cada espécie tem algo como um universo à parte, ditado pelos seus limites específicos de percepção. Para cada uma, é como se existisse uma espécie de lente, a “filtrar” o mundo “real”, aquele que preexiste e que independe da espécie. Seu “universo” não é o que existe “de verdade”, do lado de fora da lente, mas que foi submetido às transformações da cor e do grau das lentes da espécie. Não seria assim com animais que só enxergam no “escuro” (para nós), com os que veem sonoramente (morcegos, p. ex.), com os que enxergam apenas em branco e preto, com os desprovidos de sistemas internos de regulagem de temperatura corporal, e assim por diante?

         Não seria absurdo falar em mesmo universo táctil para minhocas e tartarugas? Supor que siris e gatos compartilhem do mesmo universo sonoro? Acreditar que cachorros e serpentes vivam no mesmo universo olfativo? Poderíamos dar asas à imaginação – e  perguntar: se fossem filósofos e cientistas, que critérios de verdade os animais aceitariam? Lobos e papagaios poderiam colocar-se de acordo quanto aos mesmos? Toda espécie centra em si, portanto, a sua verdade sobre o universo.

         Assim, muito longe das coisas em si, a apreensão que os homens têm do mundo é antropocêntrica. Tão antropocêntrica como seria, por exemplo, “crocodilocêntrico” o universo tal qual figurado por crocodilos ou “felinocêntrico” o dos felinos. O antropocentrismo é a condição inicial e final de toda relação do Homem com o universo. É o ponto de vista a partir do qual inexoravelmente construímos nossos mundos e nossas verdades. O antropocentrismo é a lente sem a qual somos cegos e – pior – sem imaginação. O Homem não tem acesso ao mundo tal qual é – ao mundo independente das lentes de sua humanidade. É escravo de seus óculos: percebe não o que é, ou parece ser, mas o que transparece por seus cristais.

         Essas lentes não configuram absolutamente um mentalismo que esqueça que os homens são produtos do mundo e partes integrantes dele. Lembremos apenas que os homens produzem um mundo: o dos homens. Entre homens e mundo envolvente não há pontes, pois não há abismos *.

         Não são cores, sons, temperaturas, cheiros... o que percebemos do mundo; são informações já cifradas. Olhos, narizes, ouvidos, peles não se limitam a “fotografar” o real, mas o codificam, enquadrando-o em uma grade de relações. Há células especiais, entre os mamíferos, localizadas no córtex cerebral, que cumprem esta tarefa de organizar dados brutos captáveis pela sensibilidade – organização que começa a ser realizada já nos órgãos dos sentidos: células que reagem apenas a estímulos de determinado tipo.

         Na retina, por exemplo, há “contraste entre movimento e imobilidade, presença ou ausência de cor, passagem do claro ao escuro ou o contrário, contornos positiva ou negativamente curvos dos objetos; deslocamento em linha reta ou oblíqua, da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda, no sentido horizontal ou no sentido vertical etc. A partir de todas estas informações, a mente reconstrói, poder-se-ia dizer, objetos que não foram percebidos como tais... Por conseguinte, os dados imediatos da percepção sensível não são material bruto... consistem em propriedades distintivas abstraídas do real”[1] *.

         Além dos códigos naturais, provavelmente de base genética, que organizam as sensações desde os órgãos dos sentidos e das estruturas do córtex cerebral, cada cultura de certa forma programa e influencia o registro das impressões sensoriais. Assim, a visão “aguda” dos índios das planícies norte-americanas – por exemplo - não resultaria certamente de uma acuidade visual organicamente superior, mas de uma habilidade culturalmente exigida e estimulada, no sentido de compreender o que significam os movimentos de um animal ou cavaleiro por intermédio da poeira que longe levantam.

         No mesmo espírito, Roque Laraia nos fala da habilidade dos índios Tupi de visualizar a floresta amazônica, que para o antropólogo não passa de um amontoado confuso de árvores e arbustos: “cada um dos vegetais tem um significado qualitativo e uma referência espacial”. Ao invés de marcar, como nós, encontros nas esquinas, frequentemente usam determinadas árvores como pontos de referência: “ao contrário da visão de um mundo vegetal amorfo, a floresta é vista como conjunto ordenado, constituído de formas vegetais bem definidas”[2]. Isso se explica porque na base dessas visões existe uma taxionomia, um sistema de classificações, cujos princípios são postulações específicas das culturas em referência. *

         Mas essas codificações também tocam o que é muito particular na escala individual: cegos de nascimento, que foram operados de catarata no período pré-adolescente, ao “enxergar” pela primeira vez não “veem” no sentido usual. Leva tempo para organizar as manchas sem sentido em um mundo com significado, pois a reação inicial é uma dolorosa aflição diante de uma confusão caótica de quase-cores e quase-formas que parecem não ter qualquer relação compreensível entre si: “apenas vagarosamente e com esforço intenso pode aprender que esta confusão manifesta uma ordem, e somente com vigorosa aplicação se capacita a distinguir e classificar objetos e adquirir significado de termos como “espaço” e “forma”.”[3] *

         Nos tempos homéricos a distinção entre verde e azul não era nítida, assim como para diversas culturas as diferentes cores absolutamente não coincidem. Falando dos Bororo, Lévi-Strauss diz: “o amarelo e o vermelho formam frequentemente para eles uma só categoria linguística...”[4] *. Ora, o conjunto das cores, é um continuum de ondas luminosas, cuja frequência aumenta numa taxa constante. A parte do continuum de ondas que pode ser percebido pelo olho humano é designada “espectro”, limitada pelas ondas mais longas, que podemos ver como “violeta”, e pelas mais curtas, que percebemos como “vermelho”: todas as outras cores do espectro encontram lugar entre estas. Assim, a percepção da luz, fragmentada em cores, parece ser a mesma para todos os seres humanos, definida pelos seus equipamentos neurocerebrais. Mas as maneiras pelas quais as diferentes culturas organizam essas impressões para fins comunicativos exibem notáveis diferenças. *

         Não se trata absolutamente de sustentar que os membros dessas culturas sejam cegos em relação às cores não nomeadas, ou incapazes de discriminar entre cores “diferentes” que são reunidas na mesma categoria. Os japoneses, por exemplo, têm apenas uma palavra, aoi, para designar a parte do espectro que abrange o verde e o azul. Mas o fato de não fazerem distinção linguística entre elas não significa que não as possam separar se assim quiserem – pois obviamente o fazem através de descrições, comparações e metáforas. Significa apenas que a língua e, de um modo geral, a cultura japonesa não parecem exigir essa distinção para efeitos da vida cotidiana.

        Talvez por procederem de cultura que atribui relativamente pouca importância ao olfato como meio positivo de organização do mundo (estamos mais preocupados em nos proteger dos cheiros), os antropólogos não dedicaram atenção comparável ao seu estudo em perspectiva transcultural. É claro que aqui e ali se encontram referências à extrema sensibilidade olfativa de certos povos – como os esquimós, capazes de se orientar olfativamente em ambientes pouco definidos pela visão, ou os ilhéus andamaneses, que elaboraram um calendário olfativo, apoiando-se nos perfumes que a natureza exala regularmente. *

         Corre nos Estados Unidos uma fábula que nos ajudaria a compreender a questão, pelo que tem de ilustrativa: certa vez um camponês caminhava por uma rua movimentada na companhia de um amigo criado na cidade, quando de repente exclamou: - “Ouça, o canto do grilo!” O citadino nada conseguia ouvir, até que o camponês foi buscar, escondido em um buraco, o grilo que cantava. – “Como você pode ouvir o grilo em meio a toda esta barulheira?”, perguntou o da cidade, cheio de admiração. – “Olhe!”, respondeu o camponês, deixando cair uma moeda no chão. Várias pessoas se voltaram, ao ouvir o fraco ruído da moeda. – “Tudo depende daquilo por que a gente se interessa.”

         Cada cultura guardará de maneira específica a acuidade dos órgãos do sentido em complementação aos limites da base orgânica. Fornecerá “lentes” olfativas, tácteis, gustativas, auditivas e visuais particulares. Não é isso que entre nós mesmos nos ensinam os provadores de vinho, os afinadores de instrumentos musicais, os controladores de qualidade de produtos, os vendedores de perfume?

RODRIGUES, José Carlos. Antropologia e comunicação: princípios radicais. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. p. 130 a 138.


[1] LEVI-STRAUSS, Claude. Le regard eloignéParis: Ed. Plon, 1983. p. 162.

[2] LARAIA, Roque. Cultura: um conceito antropológico. Rio: Jorge Zahar, 1986. p. 69 e 96.

[3] NEEDHAM, Rodney. Introdução. In: DURKHEIM, Émile e MAUSS, Marcel. Primitive classification. Londres: Cohen end West, 1963. p. VII.

[4] LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Anhembi, 1975. p.262.


PERSPECTIVISMO SENSORIAL EM NIETZSCHE

 

Minha vista, seja forte ou fraca, enxerga ape­nas a uma certa distância, e neste espaço eu vivo e ajo, a linha deste horizonte é meu destino imediato, pequeno ou grande, a que não posso escapar. Assim, em torno a cada ser há um cír­culo concêntrico, que lhe é peculiar. De modo semelhante, o ouvido nos encerra num pequeno espaço, e assim também o tato. É de acordo com esses horizontes, nos quais, como em muros de prisão, nossos sentidos encerram cada um de nós, que medimos o mundo, que chamamos a isso perto e àquilo longe, a isso grande e àquilo pequeno, a isso duro e àquilo macio: a esse medir chamamos "perceber" - e tudo, tudo em si é erro! Conforme a quantidade de experiências e emoções que nos são possíveis em média, num momento determina­do, cada qual mede a sua vida, breve ou longa, pobre ou rica, plena ou vazia: e segundo a vida média humana medimos a de todas as demais criaturas - e tudo, tudo em si é erro! Se a nossa visão fosse cem vezes mais aguda para as coisas próxi­mas, o ser humano nos pareceria monstruosamente compri­do; sim, pode-se imaginar órgãos que fariam percebê-lo como imensurável. Por outro lado, poderia haver órgãos constituídos de tal forma que sistemas solares inteiros parecessem contraí­dos e ajuntados como uma única célula: e, para seres de con­formação oposta, uma célula do corpo humano poderia apre­sentar-se como um sistema solar, em movimento, construção e harmonia. Os hábitos de nossos sentidos nos envolveram na mentira e na fraude da sensação: estas são, de novo, os funda­mentos de todos os nossos juízos e "conhecimentos" - não há escapatória, não há trilhas ou atalhos para o mundo real! Estamos em nossa teia, nós, aranhas, e, o que quer que nela apanhemos, não podemos apanhar senão justamente o que se deixa apanhar em nossa teia.

NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 90.


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