LINGUAGEM ESCRITA E FILOSOFIA 1
No fim das contas, a cultura não é senão uma série de atos de comunicação; e as diferenças no modo de comunicação são frequentemente tão importantes como as diferenças no modo de produção, pois envolvem progressos na possibilidade de armazenagem, na análise e na criação de conhecimento, assim como as relações entre os indivíduos envolvidos. Muito concretamente a escrita e, mais especificamente, a aprendizagem e o uso da escrita alfabética tornaram possível examinar o discurso de uma outra maneira, emprestando à comunicação oral uma forma semipermanente. Este exame permitiu dilatar o raio de ação da atividade crítica e, portanto, da racionalidade, do ceticismo e da lógica *. As potencialidades da crítica aumentaram, porque a escrita expôs de forma inédita o discurso perante os nossos olhos. Simultaneamente, aumentaram as possibilidades de acumular conhecimento, em especial o conhecimento de tipo abstrato, pois a escrito transformou tanto a natureza da comunicação, fazendo-a ir além dos contatos pessoais, como o sistema de armazenamento da informação. Assim uma área muito mais extensa de "pensamento" ficou ao alcance do público leitor. Doravante, o problema do armazenamento na memória deixava de dominar a vida intelectual do homem; a mente humana libertava-se para poder estudar um "texto" estático (em vez de estar limitada pela participação no "enunciado" dinâmico), o que possibilitava ao homem ganhar um certo distanciamento em relação à sua criação e examiná-la de forma mais abstrata, generalizada e racional. Ao tornar viável esquadrinhar as comunicações da humanidade ao longo de um lapso de tempo muito mais vasto, a alfabetização estimulou * o espírito crítico e a prática do comentário *.
Nesta hipótese encontra-se a resposta, pelo menos parcial, para a questão da emergência da Lógica e da Filosofia. * O interesse pelas regras do raciocínio ou pelos fundamentos do conhecimento parece emergir * da formalização da comunicação (e portanto de "asserções" e "crenças") inerente à escrita. O discurso filosófico é uma formalização exatamente do mesmo tipo, que esperaríamos encontrar no alfabetismo. Ora, as sociedades "tradicionais" estão marcadas não tanto pela ausência de pensamento reflexivo, como pela ausência de utensílios apropriados à meditação. *
Estas formas de pensar se relacionavam com os modos de comunicação do homem * e com * as grandes transformações nos meios de comunicação: a evolução da escrita, a adoção do alfabeto e a invenção da imprensa. * Não foi por acaso que as etapas decisivas na evolução daquilo a que hoje chamamos "ciência" se seguiram à introdução de grandes transformações nos canais de comunicação: na Babilônia (a escrita), na Grécia antiga (o alfabeto) e na Europa Ocidental (a imprensa).
GOODY, Jack. Domesticação do pensamento selvagem. Lisboa: Editorial Presença, 1998, p. 47, 55, 61 e 62.
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LINGUAGEM ESCRITA E FILOSOFIA 2
Sempre me pergunto o que seria da bossa-nova sem o microfone, um pressuposto tecnológico indispensável para a existência de cantores como João Gilberto, em que a qualidade musical independe da potência vocal - cantores que demonstram sua maestria justamente enquanto exploram um estilo intencionalmente murmurante. Se não existisse o microfone, quem sabe a bossa-nova também não existiria ou, pelo menos, não seria a mesma nem teria a mesma difusão (e talvez não fosse exagero admitir que ela nasce em grande parte da própria exploração dos recursos modernos de amplificação e registro do som, o que acontece também com outros gêneros, como o rock'n roll, ao explorar, em sentido contrário, não os limites do muito baixo, mas do muito alto). Isso não tem, em princípio, nada de absurdo. A História registra, através dos séculos, o impacto de novas tecnologias sobre as formas de expressão cultural da humanidade, uma experiência que vivemos hoje de um modo especialmente intenso, quando se desenvolve e se afirma como um bem de consumo essencial toda uma avançada tecnologia de comunicação. Talvez por isso sejamos mais sensíveis que as gerações passadas para perceber as imbricações necessárias entre técnicas e artes. *
O livro de Eric. A. Havelock[1], A revolução da escrita na Grécia e suas consequências culturais[2] * pretende justamente ressaltar o impacto da invenção do alfabeto sobre as mais diversas formas de expressão cultural, enfocando-o como "uma peça de tecnologia explosiva, revolucionária por seus efeitos na cultura humana, de uma maneira que nada tem de exatamente comum com qualquer outra invenção"[3]. *
A produção de Havelock tem a peculiaridade de utilizar, além da contribuição antropológica, também as modernas teorias da comunicação. Seus primeiros trabalhos (...) são contemporâneos dos primeiros estudos de McLuhan[4] - o que não se deve a mero acaso. *
Havelock esclarece as bases teóricas que utiliza, o que poderia ser resumido no seguinte: a) o alfabeto, como qualquer outro artefato tecnológico, foi inventado; b) embora houvesse outras formas de escrita anteriores, a invenção do alfabeto aconteceu na Grécia, em algum momento do século VII a.C.; c) só se pode considerar que existe propriamente uma escrita alfabética quando se faz a distinção - aparentemente simples mas, de fato, abstrata e complexa - entre a representação gráfica de fonemas vocálicos e consonantais, a partir dos quais se compõem as sílabas de um língua determinada (ora, essa distinção registra-se, pela primeira vez na história humana, apenas quando surge o alfabeto grego e não em algum dos outros sistemas de escrita que o precederam); d) um sistema assim concebido teve consequências culturais de grande porte, por dotar a cultura de um método extremamente simples e facilmente assimilável de registro da língua oral, acessível não só a uma casta de escribas, mas também ao cidadão comum; e) essa facilidade de comunicação e de registro, paulatinamente, vai provocando o aparecimento de documentos reflexivos (contra a tendência descritivo-narrativa predominante no âmbito da oralidade), modifica a própria sintaxe do grego e faz surgir o que Havelock denomina, reconhecendo sua novidade, como discurso conceitual. *
Em seguida, * vale a pena resumir passo a passo o resumo do próprio autor: a) a invenção do alfabeto acontece na Grécia, como um acontecimento absolutamente novo e único, que permitirá o surgimento de "duas formas gêmeas de conhecimento: a literatura, no sentido pós-grego; e a ciência, também no sentido pós-grego"[5]; b) a "cultura clássica dos gregos" já existia antes da invenção do alfabeto, permanecendo predominantemente oral ainda vários séculos após sua invenção[6]; c) o que define uma cultura é o "armazenamento de informações para a reutilização", tanto através da escrita, quanto por recursos orais[7]; d) numa cultura pré-letrada, como era a grega em suas origens, o mecanismo de estocagem de informações era o registro "de enunciados impressos nas memórias do cérebros individuais de gregos vivos", o que se torna possível desde que esses enunciados se disponham em forma metrificada, "pois só a linguagem regida pelo ritmo pode ser repetida como algo que se assemelhe à invariabilidade garantida na documentação", não se prestando a linguagem prosaica para a veiculação de "enunciados que exigem preservação"[8]; e) a antiga poesia é, portanto, "uma invenção de antiguidade imemorial, destinada ao propósito funcional de prover um registro contínuo em culturas orais", a partir de "técnicas mnemônicas características de uma cultura oral"[9]; f) no âmbito da oralidade, a transmissão é um ato socialmente compartilhado e, como tal, indispensável para que os enunciados exerçam de fato sua função de preservação do estoque da cultura[10].
BRANDÃO, Jacinto Lins. Oralidade, escrita e literatura: Havelock e os gregos. Revista Literatura e Sociedade, da USP. 2(2), 222-231. https://doi.org/10.11606/issn.2237-1184. v0i2 p222-231.
[1] Eric Alfred Havelock (1903 - 1988) foi um helenista inglês que buscou mostrar em sua obra como o surgimento da escrita alfabética foi fundamental para a grande revolução cultural empreendida pelos antigos gregos, na qual se destaca o surgimento da ciência e da filosofia.
[2] HAVELOCK, Eric A., A revolução da escrita na Grécia e suas consequências culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
[3] Ibid., p. 14.
[4] Herbert Marshal Mcluhan (1911 - 1980) foi um filósofo e teórico da comunicação canadense que procurou mostrar em seus livros como as transformações tecnológicas, especialmente no campo da comunicação, vão transformando a história cultural da humanidade.
[5] Ibid., p. 188.
[6] Ibid., p. 188. Um exemplo disto é que os livros escritos pelo importantíssimo filósofo grego Platão (428-348 a.C.) buscavam reproduzir os diálogos filosóficos do seu mestre, Sócrates (470-399 a.C.), que por sua vez nunca escreveu nenhum livro.
[7] Ibid., p. 189. No mundo moderno, os computadores conectados em forma de rede vêm tornando-se cada vez mais a forma fundamental de armazenamento das informações culturais.
[8] Ibid. p. 189. Os livros de Homero, que sistematizaram em linguagem escrita a antiga mitologia grega oral, ainda guardavam resquícios da linguagem oral metrificada, rítmica, memorizada que era utilizada em uma época em que a tradição precisava se basear exclusivamente na memória destes homens, os aedos, que eram considerados porta-vozes do divino.
[9] Ibid., p. 189.
[10] Ibid., p. 190.
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Resumo geral da discussão sobre as tecnologias da comunicação/pensamento (clique para ampliar):
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